sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Os Galegos nas Letras Portuguesas


NOTA PRÉVIA
Ao livro
Os Galegos nas Letras Portuguesas
Coordenação de Rodrigues Vaz
Pangeia Editora, 2008


Na península que habitamos, na Europa, mesmo no mundo inteiro, nada nos é mais próximo do que a Galiza, nada deveria ser-nos, também, mais caro. Temos ali uma irmã de cultura, no idioma, no modo de ser. Por ali se prolongam tranquilamente as nossas paisagens. Foi dali que, num dia longínquo, nascemos como país, depois de séculos em que o nosso Norte era somente o Sul da Galiza.

Fernando Venâncio
Semanário Expresso. 1 de Dezembro de 2007


Não podemos estar mais de acordo com a afirmação da citação em epígrafe, retirada de um artigo que aquele professor universitário publicou no referido semanário português, sob o título Mana Galiza.
Efectivamente, malgrado várias tentativas de divisão e, nalguns sectores, o aparecimento de algumas pedras-no-sapato da reconhecida irmandade que ainda se nota entre portugueses e galegos, a verdade é que o tempo actual é de união e tudo será pouco para fomentar o seu reforço nos próximos anos.
Porque, como aliás o professor Fernando Venâncio realça justamente, «Um crescente conhecimento do passado e do presente galegos virá minar-nos algumas certezas. Virá confrontar o nosso secular autocomprazimento com interrogações inesperadas, talvez incómodas. Alguns exemplos triviais. Proclamamos, com íntimo alvoroço, que, sem os portugueses, o Mundo teria ficado de três maravilhas: a da saudade, a do infinito pessoal e a das cantigas de amigo. Em doridos fados, em engenhosos ensaios, miramos e remiramos essas dádivas dos deuses. É um espectáculo deprimente. Porque tudo isso, e bastante mais, trouxemo-lo do fornecido celeiro de origem, onde já se tinha inventado a saudade (a palavra e a coisa), onde já o infinito pessoal se fizera corrente (e, à cautela, se assegurara o futuro do conjuntivo) e onde se começava a internacionalizar a cantiga de amigo, o género mais “in” de toda a largura norte da Península.»
Povo generoso, conhecido pela sua honestidade e probidade, pelo que era-lhe pedido frequentemente servir de intermediário de recados de amor, que veio a Lisboa para governar a sua vida, passando tão discretamente quanto possível, o galego foi presença marcante nos últimos séculos em toda a capital portuguesa, adoptando primeiro as mais variadas profissões que exigiam esforços, nomeadamente aguadeiros, estivadores, mariolas, carregadores e amoladores, não esquecendo os boleeiros e os pitrolinos, e depois os empregados de mesa e, por último, proprietários de tascas e restaurantes e negociantes imobiliários.
Quer às esquinas da Rua Augusta, à espera de clientes, quer no largo que hoje se chama do Chiado mas que no século XVII era conhecido como Ilha dos Galegos, por estes ali se concentrarem amiúde, os galegos eram tão notórios que todos os viajantes da época os referem, normalmente no aspecto positivo, como, por exemplo, a princesa Ratazzi, no conhecido livro “A Formosa Lusitânia”, que Camilo Castelo Branco traduziu, define-os assim: «Os melhores criados, mais trabalhadores, honestos, briosos e fiéis são galegos, assim como os carregadores, aguadeiros e a maior parte dos padeiros de Lisboa. Se a gente precisa de um portador fiel, chama um galego. (…)»
Na verdade, se bem que a emigração se dá agora em sentido contrário, sobretudo do norte de Portugal para a Galiza, a presença dos descendentes de imigrantes galegos continua a ser notória em Lisboa, especialmente na restauração e no negócio de imóveis. E também no plano intelectual, a contribuição galega é igualmente notória, desde o escritor Alfredo Guisado, um dos luminares do grupo Orfeu, que quando vereador da Câmara de Lisboa, conseguiu fazer aprovar a construção do Crematório do Cemitério do Alto de S. João, contra a vontade da Igreja Católica, a Fernando Assis Pacheco, escritor de reconhecido valor, desde o grande escritor José Rodrigues Miguéis ao professor Juvenal Esteves, desde a escritora e poeta Matilde Rosa Araújo ao grande pintor Dominguez Alvarez, entre muitíssimos outros.
Porque os tempos são outros e outras as condições, já não vamos ouvir mais o célebre pregão “Aú”, que dava tipicismo e cor à Lisboa do antigamente, mas, curiosamente, voltámos desde há dois anos a ouvir o toque típico e o pregão “Amolar tesouras e navalhas e compor guarda-chuvas”, por sinal por beirões dos quatro costados que ainda conseguiram as típicas tarasanas – roda dos sete ofícios – que foram desencantar algures a um velho amolador do Sobroso, nas cercanias de Mondariz.
Como é geralmente conhecido, os galegos são os responsáveis pela implantação, em Lisboa, de vários manjares que ainda hoje são presença na maior parte das ementas alfacinhas.
A saber, a meia-desfeita, nome que vem de ser uma dose para duas pessoas, pois antes tudo era partilhado para ficar mais barato; a mão-de-vaca, que, tal como a meia desfeita, era para utilizar o grão-de-bico, aliás o grabanzo galego ou o ervanço beirão; as iscas, que os galegos começaram a servir com “elas”, batatas fritas às rodelas; o caldo verde, aliás com couve-galega; o bitoque, que tomou o nome de um galego atarracado que o começou a servir; além do prego, assim denominado por ser feito com as pontas da carne, e do caldo de camarão e da fava-rica.
Não esquecer também o seu papel na higiene da capital portuguesa, que sem eles seria, evidentemente, mais suja e mais insalubre, porque a sua presença foi fundamental para a distribuição de água e para o primeiro serviço de bombeiros, de capital importância numa época em que havia muitos incêndios, especialmente durante o Verão. Além da importante função de transportar os doentes para os hospitais e levar os mortos para os cemitérios, a construção do Aqueduto das Águas Livres, no tempo do Marquês de Pombal, teve também a imprescindível colaboração dos galegos, assim como a reconstrução da cidade de Lisboa após o terramoto de 1755 e os trabalhos do convento de Mafra, não esquecendo que eles foram os pioneiros da Companhia das Águas, pois não devemos esquecer que no séc. XVIII, estavam nesse serviço nada menos do que 3000 galegos, que se forneciam em 29 chafarizes.
Ligada aos galegos em Lisboa está desde há muito tempo a capela de Santo Amaro, no Alto de Santo Amaro, que é conhecida como a capela dos Galegos, por estes venerarem este patrono dos membros superiores e inferiores, afinal a sua ferramenta essencial para o trabalho.
Por tudo isto, é inegável que a solidariedade luso-galega tem de ser encarada como a coisa mais justa e natural do mundo, pois que de povos irmãos se trata, sendo as diferenças também sintomas de união. O que nos leva a concordar completamente com Fernando Venâncio, quando ele conclui: «Parece (..) proveitoso deixar descansar a História e seus sobressaltos, ou lembrá-la só para entender melhor aonde chegámos hoje. Um bom começo seria proibir lirismos do tipo «a separação que nunca devia ter-se dado», «unir o que a História dividiu», «reconstruir a Galécia». Tudo lastro, tudo tralha. Baste-nos saber que, se de algum povo somos manos, é desse. Demasiado parecido connosco, ele canta melancólico, chamando-se a si mesmo «uma folha no vento/ alento e desalento», como no soberbo número “O Meu País”, do grupo Luar na Lubre, com a voz da portuguesa Sara Vidal. Ou já bem diferente, seguro, inventivo, achamo-lo ao estirador ou frente ao ecrã, criando uma banda desenhada e uma animação digital que dão cartas a nível peninsular e europeu. É assim que muitos galegos preferem olhar o seu país, como um projecto de futuro, numa periferia que já não é condenação mas oportunidade.»
Por em tal acreditarmos é que correspondemos ao convite do conhecido empresário hoteleiro Manolo Carrera para organizar esta compilação, como forma de assinalar os 100 anos da Xuventude de Galicia, convite que foi reforçado e acarinhado pela actual Direcção.
Foi uma tarefa fácil, porque eu próprio, devido às minhas anuais deambulações pela Galiza e pelas minhas relações com homens de letras galegos, já tinha começado a organizar a minha bibliografia sobre a Galiza e tinha mesmo pensado que um dia iria organizar um livro que mostrasse como os galegos têm sido vistos nas letras portuguesas.
Foi portanto juntar o útil ao agradável.
É evidente que esta não é uma compilação exaustiva da presença dos galegos nas letras portuguesas. É a minha compilação. Subjectiva, portanto. Refiro-me a letras e não a literatura, porque esse era também o meu objectivo: pescar referências aos galegos, mesmo nos sites e até em publicações pouco conhecidas, e incluí alguns textos de qualidade realmente muito discutível, mas cujo amor que deixavam transparecer em relação à Galiza e aos galegos me levou decididamente a transgredir na qualidade.
A fundação da Xuventude de Galícia foi uma aventura que vale a pena continuar. No seu primeiro centenário de vida, esta também é uma forma de a enriquecer, justificar a sua existência e ajudar a projectar o seu futuro assim como os dos galegos que têm Portugal também como a sua segunda pátria.
Resta anunciar que a este volume mais dois se lhe seguirão: A Galiza nas Letras Portuguesas e Dicionário dos Galegos em Portugal.

Rodrigues Vaz

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